quinta-feira, 19 de maio de 2016

Descendência






Descendência

Só um momento, e já deixarei a sagrada nave
antes que a santa missa inicie seus ritos
Sim, eu já estive antes num local sagrado
Onde vi os fumos de oferendas se elevarem ao céu
e a glória de um irmão ser exaltada por Deus.
Muito longe já se vão as eras
em que este mundo era apenas o óvulo da vida.
Estávamos destinados a gerar os novos homens
que haveriam de lavrar os campos e construir cidades de paz
Esta seria a herança de meu irmão aos seus filhos bem-amados.
Porém, quem prevaleceu foi o Outro
O Malquerido, o Indesejado.
Ah...tanto tempo se foi e ainda sou ferido em minha mente
Pelas lanças pontiagudas de meu orgulho bastardo.
Hoje eu bem sei que a oferenda enaltecida
Não era apenas da ovelha a carne,
senão a própria carne de meu irmão.
Pois foi queimado por ele no altar do sacrifício
não o animal de seu rebanho, mas seu animal interior.
A fumaça subindo aos céus agradou o Criador
porque era feita do lento forjar de uma alma
queimando dentro de si a bestialidade dos instintos,
a ignorância, a pequenez, a agressividade, o ciúme e a gula
Ele imolou em si a fera e fez nascer o humano
E para ele a face de Deus voltou-se alegremente
Pois Seu filho amado compreendera o sacrifício exigido.
Eu, caí.
Mas foi minha a descendência que seguiu-se então
chegando aos dias de hoje, ao número de bilhões.
Quem seriam eles se fossem filhos de meu irmão?
Se não herdassem de mim a semente amarga da selvageria?
Consigo olhá-los com carinho, pois compreendo fundamente a sua imperfeição.
Hei de ajudá-los a reerguer os templos caídos de almas adormecidas
E passo a passo, em suas perturbadas vidas,
amansarem as feras de todas as paixões indignas para que a alma aflore.
Prometo esforçar-me para auxiliá-los, meus filhos, a burilar as rochas e acordar as pedras.
Eu, caí.
Eu, Caim.


Bíndi