sábado, 17 de setembro de 2016

Sagrado Corpo


Meu corpo, dorme.
Durma, pequenino
Sou teu Espirito e velarei por ti.
Como pequeno animal aos meus pés, te vejo dos planos do sono.
Não te preocupes que mesmo ao dormires eu velo, em estado de constante alerta
Sou tua consciência, em vigília ou não.
Tenho tanto a te agradecer!
Corpo que me auxilia, me carrega
Veste que me protege de muitos males, alguns até ignorados por mim.
Que é as mãos e braços de Deus agindo através de mim, aqui nesse mundo.
Pela manhã, levanta-te alerta e firme...sei que querias dormir mais, mas temos tanto a fazer...
Dominar a indolência e a falta de vontade é uma das lições a aprender através de ti.
Tu me ensinas muito, sem o saberes.
As lições da dor, as lições do cansaço, do temperamento difícil hereditariamente originado
Às vezes deixo-me levar por ti, tuas paixões, interesses, sofrimentos carreiam-me pra longe
Me perdoa...porque deveria ser eu o teu mestre, e te guiar por caminhos firmes e seguros
Eu que, afinal, tenho milênios de vida, enquanto que tu apenas despertaste nesta.
Deverias seguir-me, confiante, como um cachorrinho que ama seu tutor e mestre e a ele confia a própria vida.
Ao invés disto, tantas vezes deixo a realidade nos golpear com seus freios educadores
Antes que nos joguemos, de frente, contra os muros e precipícios das inclinações imaturas.
Desculpa-me, então...não quis te machucar com a minha imprevidência. Teu bem, é o meu bem...
Precioso vaso que Deus me confiou para que eu o usasse como instrumento de Sua vontade generosa,
Mostrando a mim, através de ti.
Um dia, te deixarei para trás, como roupa muito usada
E como gostaria de ter ensinado, a cada célula tua, o que é amar
Para que um dia elas construam outro corpo, veste de alma mais evoluída que a minha,
Já cientes de como viver uma vida em generosidade e paz.
Que os anjos te abençoem, e a mim também.


Bíndi

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Descendência






Descendência

Só um momento, e já deixarei a sagrada nave
antes que a santa missa inicie seus ritos
Sim, eu já estive antes num local sagrado
Onde vi os fumos de oferendas se elevarem ao céu
e a glória de um irmão ser exaltada por Deus.
Muito longe já se vão as eras
em que este mundo era apenas o óvulo da vida.
Estávamos destinados a gerar os novos homens
que haveriam de lavrar os campos e construir cidades de paz
Esta seria a herança de meu irmão aos seus filhos bem-amados.
Porém, quem prevaleceu foi o Outro
O Malquerido, o Indesejado.
Ah...tanto tempo se foi e ainda sou ferido em minha mente
Pelas lanças pontiagudas de meu orgulho bastardo.
Hoje eu bem sei que a oferenda enaltecida
Não era apenas da ovelha a carne,
senão a própria carne de meu irmão.
Pois foi queimado por ele no altar do sacrifício
não o animal de seu rebanho, mas seu animal interior.
A fumaça subindo aos céus agradou o Criador
porque era feita do lento forjar de uma alma
queimando dentro de si a bestialidade dos instintos,
a ignorância, a pequenez, a agressividade, o ciúme e a gula
Ele imolou em si a fera e fez nascer o humano
E para ele a face de Deus voltou-se alegremente
Pois Seu filho amado compreendera o sacrifício exigido.
Eu, caí.
Mas foi minha a descendência que seguiu-se então
chegando aos dias de hoje, ao número de bilhões.
Quem seriam eles se fossem filhos de meu irmão?
Se não herdassem de mim a semente amarga da selvageria?
Consigo olhá-los com carinho, pois compreendo fundamente a sua imperfeição.
Hei de ajudá-los a reerguer os templos caídos de almas adormecidas
E passo a passo, em suas perturbadas vidas,
amansarem as feras de todas as paixões indignas para que a alma aflore.
Prometo esforçar-me para auxiliá-los, meus filhos, a burilar as rochas e acordar as pedras.
Eu, caí.
Eu, Caim.


Bíndi








sábado, 12 de março de 2016

Armadilhas do Tempo



O teu amor é minha voz trêmula tentando te dizer adeus, e minhas mãos inertes não querendo te acenar. O teu amor estava na estátua do Senhor morto, nas roliças pombas das praças, estava na medalhinha do cordão dourado em teu peito batendo em meu rosto enquanto me amavas. Estava nos olhos com que me miravas nesse momento, cujo olhar parecia vir de um lugar fora do tempo e espaço.

Mas ah...estava mais ainda em minha alma, tão entranhado em minha alma que ela arranhou-se toda nos espinhos da saudade que me atravessaram antes mesmo de minha partida. E o trem chegou, tão veloz, tão veloz...e me levou de ti numa sofreguidão indiferente que não deu por conta do meu espectro parado ainda lá, na estação a te olhar. Ficou para trás meu desejo de dias contigo, te acompanhando pelas escadarias em que subimos nós e desceste só.

Teu amor foi tão grande que não permitiu que eu te visse partir, pois sabias que meu coração congelaria no momento em que me desses o último olhar. Preferiste tu ser aquele deixado para trás, acenando e correndo atrás do comboio que me levava, chorando, a uma vida sem ti.

Mas eu sei que o silêncio é a pausa entre duas palavras de carinho, e a saudade é a pegada que o amor deixou: um dia andarei sobre meus próprios passos, refazendo o caminho que me afastou de ti, e encontrarei ainda a sombra de tua imagem na estação, impregnada como almíscar nas rendas do tempo. E nesse dia, do fundo do silêncio, eu ouvirei a tua voz a me chamar, e cada rosto que cruzar por mim verá a luz daquela que vai reencontrar seu grande amor, pra nunca mais, pra nunca mais, se separar.


Do teu amor, Bíndi!


domingo, 3 de janeiro de 2016

Pequena Fábula do Construtor Equivocado






Então o grande Arquiteto entregou ao Construtor um desenho divino, que se fosse construído com esmero, com a colaboração da força, amor e tenacidade deste, resultaria na mais bela obra do universo.

Para realizar tal projeto, ao Construtor era dado montar andaimes, tapumes e fôrmas que o auxiliariam, peças feitas de tábuas simples que outra função não tinham que a de servirem de apoio enquanto exercitava o Construtor a consecução de sua verdadeira obra.

Porém, fato muito estranho se deu, pois o Construtor, a sapatear em seus andaimes na sua atividade diária, achou por bem ir ficando por ali, onde poderia montar uma moradia fácil, em contrapartida da edificação do desenho do Arquiteto, que às vezes o enfastiava por ser trabalhosa demais e exigir paciência e desvelo; afinal, seguidamente caíam tijolos mal alinhados, a massa que deveria unir tijolo a tijolo era fraca e tinha que ser refeita, enfim, a coisa toda era obra de muito mourejar.

Assim, o andaime frágil e limitado passou a ser a finalidade do Construtor, que nele foi juntando apetrechos, utensílios e móveis, decorando conforme seus pendores, até que o tal ficasse ataviado e mobiliado, constituindo-se na sua moradia oficial, então.

E pela vizinhança toda, por toda a cidade, outros Construtores assim procediam, desistindo de erigir o prédio do desenho original, cada qual em fase diferente...alguns, mais empenhados, levantavam paredes inteiras, outros impacientavam-se já nos alicerces, alguns, muito aplicados, iam até o telhado mas, ao olharem para o chão, como que atraídos pela facilidade de antes, pulavam de volta ao seu andaime, rudimentar e grosseiro, porém atrativamente conhecido.

Assim, por entre aqueles andaimes balouçantes, podíamos entrever belas obras inacabadas, tristemente aguardando um término, e Construtores muito ciosos de enfeitar seus andaimes com toda quinquilharia que ajuntavam, comparando o seu com o do vizinho, trabalhando nisto todos os dias, às vezes praticando delitos, tudo para ter o melhor andaime possível. Alguns, de tão pesados pela carga que lhe foi disposta em cima, despencavam com o Construtor e sua família, afinal,vamos convir, o madeirame frágil foi erigido para ser instrumento temporário, e não moradia definitiva. (Que ignorância dessa criatura, pensamos nós...)

Certa vez, um Construtor andou para longe, para bem longe da aldeiazinha em que morava, e pensando estar perdido, avistou com assombro uma Obra praticamente acabada. A primeira coisa, chocante para a pobre alma, e que lhe chamou a atenção, foi a ausência de andaimes: o prédio surgia inteiro, alvo e de linhas simples, com o sol refulgindo dourado em suas formas divinas. Ele já tinha ouvido falar de tais monumentos, idolatrados por alguns como algo que havia descido dos céus. Mas segundo se dizia entre certos grupos, havia sido obra de um Construtor da própria aldeia, o qual contava para quem quisesse ouvir que havia iniciado do mesmo ponto a partir do qual todos iniciavam: subindo em andaimes e com o auxílio destes, colocando tijolo a tijolo, com vontade, atenção e dedicação absolutos. Com muito esforço terminara a obra, e assim como havia montado os andaimes, desmontou-os um a um, peça por peça, pacientemente, para deixar então a Obra verdadeira à mostra, em toda a sua beleza: as grandes janelas sempre abertas deixavam ver a claridade maravilhosa que irradiava através das claraboias do teto, por onde o prédio recebia a luz direto das estrelas. E era assim que o grande Arquiteto havia programado para ser.

A pobre criatura, abismada com a história que a ele mais parecia um conto de fadas, retornou por fim à sua aldeia. Todavia, percebeu quão toscas eram as edificações de todos em comparação com aquela moradia excepcional. Pareceu a ele insano erigir a vida sobre algo tão frágil e deixar de lado a sólida obra que duraria para sempre. Mas ao chegar em frente à sua moradia, a esposa o chamou para decidir de que cor pintariam os tapumes que já descascavam da chuva, e ele esqueceu por completo do que havia presenciado. Outro dia, talvez.

Bíndi

Imagem: africaburn.com