domingo, 19 de abril de 2015

Encruzilhadas




Andei demais, aquele dia. Corri contra a distância, contra o tempo, contra as lembranças, corri contra o passado e, principalmente, contra o futuro.
Numa cama de hospital, minha mãe jazia. E de olhos fixos na cruz de Cristo na parede, pedia...busquem meu filho, preciso dele antes de sair da vida...tanto tempo sem vê-lo,  eu irei em desespero se não me despedir...!
Quando recebi a chamada, não pude acreditar...minha mãe morria...! Não era eterna então, não me esperaria pra sempre junto ao fogão? Eu não teria todo o tempo do mundo pra visitá-la, e tocar de novo seu peito cheio de calor humano, ter seu abraço que me embrulhava todo, ver de novo seu olhar azul antes do momento insano...?
Não...e me enfiei no carro e nele há horas rodo nesta estrada nua. Mas adiante, um carro no acostamento quebra as linhas da paisagem: uma mulher em desespero me acena...e pensando que, também ela, poderia ser a mãe de alguém que a desejava encontrar sã e salva, parei. Não havia casas, nem viva alma por quilômetros além de nós dois ali, naquela região campestre.
Ela apontou o capô levantado de seu carro, e me agradeceu sorrindo por ter sido o único ser vivo a aparecer, em várias horas. Mas nem bem tinha me aproximado dela e outra figura emergiu da sombra, e um ferro gelado me tocou a nuca...
Passa teu dinheiro, teu celular, teu carro, tudo o que tem, não te deixo nem a vida,  maninho...a tua hora chegou, aqui, agora.
Nesse momento vi que minha vida não valia nada. Porém não foi por ela que entrei em desespero...mas pela lembrança de minha mãe, me esperando angustiada. Num átomo de segundo a imaginei recebendo uma notícia triste, afundando a cabeça num travesseiro de espinhos, e tal qual o Cristo que ela tanto amava, sangrando por outro alguém.
Eu, que não sabia rezar, nem em nada acreditava, lembrei de Deus e todos os seus anjos, e duas palavras apenas pensei, orei, supliquei...me ajude!
Me ajude Deus, porque não morro sem me despedir de minha mãe querida...Preciso ao menos de mais algumas horas...
Um ruído seco de ramos se partindo veio da margem da estrada. O ladrão e a comparsa, visivelmente apavorados por algo que eu não conseguia ver no momento, fugiram. Voltei-me, mas só vi uma uma camisa quadriculada, vestindo um vulto de chapéu de palha, sumindo na mata do mesmo jeito que apareceu.
Mesmo cambaleando, corri atrás de meu salvador por entre um milharal já há muito tempo colhido, mas nada via além de talos altos e folhas secas. 

Entretanto, ao avançar até uma clareira, no chão, de camisa vermelha quadriculada, chapéu de palha, inanimado e desarticulado havia...um espantalho caído.


Bíndi

Imagem: Red car by Arte Foto

Alimentando Pombos



Chega a mensagem da amiga, de coração carinhoso
em que a doce imagem da menina me hipnotiza
eternamente alimentando pombos, num mundo só seu.
Tão doce mundo, tão delicada luz, tão tudo de bom, demais...
Mas esqueci de fechar as janelas e frestas da casa
e a vida de verdade entrou, desaforada e estridente 
pela voz do repórter do jornal das sete, que assim como alguns 
do jornal das oito, das nove, das dez e das madrugadas obscuras 
parece se deleitar em nos deitar notícias ruins pela televisão afora. 
Sim, eu sei que o mundo tem acontecimentos maus... 
Mas é preciso apresentá-los assim, nessa crueza dura? 
Ou pior, nessa narrativa que abusou de toda a maquiavélica criatividade 
para averiguar os detalhes mais indecorosos e sórdidos, 
entrevistando das vítimas a mãe, a irmã, a tia e os parentes todos 
e tentando espremer deles mais lágrimas, mais dores, 
cutucando as feridas abertas com a vozinha doce e falsa 
e acordando sentimentos doloridos e memórias perenes que talvez nem despertassem 
sem essa voracidade pela notícia violenta e sinistra. 
Deixem em paz as vítimas e seus queridos, não preciso da notícia inteira, 
esquartejada, detalhada em precisão cirúrgica e posições cadavéricas. 
Alguém morreu, eu sei. 
Mas não deite fora o respeito pela morte e pela vida como a água de um balde sujo 
Nem atire na vala comum mais um acontecimento, 
fazendo dele apenas uma isca para os números de audiência. 
Você tirou minha paz, repórter do jornal das sete 
e nem tive tempo de trocar de canal ou de baixar o volume 
antes de trocar de alma para sair desse mundo 
onde a menina eternamente alimentava pombos.



Bíndi


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Acqua Benedicta



Chove.
Chuva bela, graciosa
Molhando a mística, encarnada rosa
Água abençoada
água que tudo lava
Sonham contigo os desertos
Beduínos, andantes dispersos
Como anseiam por ti!
Elefantes da Namíbia,
em quilométricas trilhas
têm na vida um caminhar
somente pra te provar,
num fiozinho de nada
brotando do chão perverso.
Em rios subterrâneos
Te escondes durante o estio
E com que doce alegria
Te veem chegar, nas monções

E eu, em longínquos rincões
Tenho-te em abundância.
Ter-te? Não me pertences
A mim és só emprestada
água tão abençoada
que eu vejo escorrer todo dia
Lavando-me a humana sujeira
Tão dócil a escorrer da torneira

A água desce, serena
na testa em febre da humana prole
O choro da Mãe abençoa
mesmo ao filho que a atraiçoa.
Chove.

Bíndi 







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