sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Toys



"Um dia, já fomos imperfeitos. Naquele tempo, um fotógrafo fazia lindas fotos de pessoas contando apenas com alguma maquiagem e boa iluminação, unidas à sua arte e habilidade. Mas as fotos não ficavam imaculadas: havia pequenas manchas na pele, ruguinhas, um corpo mais ou menos cheinho, cabelos ​de várias ondulações, culotes, narizes de todos os tamanhos e formas...sim, éramos todos diferentes uns dos outros. 

Então, um dia, aqueles que odiavam a nossa espécie contrataram um especialista. Com ferramentas e filtros de seus softwares maravilhosos, seios cresciam, cinturas afinavam, músculos masculinizavam-se, coxas engrossavam, sardas sumiam, os cabelos não mais se rebelavam...e homens e mulheres se transformavam na imagem desejada da Perfeita Criatura, também denominada SEPSIS: Seres Eternamente Plásticos​ Submetidos à Inteligência Sintética. Mas só podíamos viver ​esta existência de perfeição ​no mundo virtual​; fora do computador, continuávamos "feios" e era impossível nos relacionar uns com os outros, já que não nos reconhecíamos, tão distintos éramos de nossos impecáveis avatares. 

Com o tempo, nós mesmos aprendemos a nos ver com o olhar crítico de nossos criadores. Pouco a pouco, notávamos imperfeições onde antes só víamos expressões de sentimentos e emoções, defeitos onde só percebíamos silhuetas humanas. Medíamos as figuras com nosso olhar, e antes de qualquer coisa, era a aparência de alguém que nos preenchia todo o pensamento. O que aquela criatura era, seu coração, personalidade e jeito, pouco a pouco foi deixando de vir ao caso; somente a perfeição formal era aceitável, o resto era material de descarte. Então, resolveram alterar também nossos corpos reais, e após poucas centenas de cirurgias, já podíamos andar pelas ruas sem nos envergonharmos de nossos prévios feitios boçais e mal projetados. 

Mas restava um detalhe, ainda não retificado pelas ferramentas dos aplicativos: tínhamos um espírito, um restolho de alma dentro de nós que, em alguns indivíduos, ​continuava a manifestar-se em surtos esporádicos de revolta contra o sistema. Mas espertamente, a maioria​ de nós​ foi devidamente doutrinada a pisotear a dignidade destes recalcitrantes, tachando-os de feiosos, velhos, ​bregas, ​pobres, ou inúteis. Engraçado que palavras como "ignorante" ou "burro" caíram totalmente em desuso como insultos, já que os adjetivos aplicavam-se à maioria de nós, então. Desta forma, ser burro ou ignorante era a regra, naturalmente aceita. Afinal de contas, a inteligência ou o caráter eram coisas abstratas, e mais do que tudo, invisíveis: e vivíamos no mundo da aparência. 

Hoje, posso ser considerada uma rebelde neste mundo. Desisti do botox há quase um ano, e ainda conservo muitas partes de meu corpo sem silicone. Mas precisei quebrar meu espelho para não cair numa crise de abstinência de cirurgias...está sendo muito difícil, difícil demais, me tornar humana de novo."

Bíndi 

http://extra.globo.com/famosos/preta-gil-reclama-de-foto-excessivamente-retocada-em-revista-13895844.html



 

 Imagem: http://funny-pictures.picphotos.net/